10 de jan. de 2013

Crónica imprecisa dumha noite de barbárie na aldeia




 Estas linhas nom som, nem pretendem ser, um trabalho jornalístico rigoroso. A minha própria situaçom interior nestes momentos, a trascendência que para mim tenhem os factos e o pouco tempo transcorrido impedem-mo. Bem pensado, se jornalistas som aqueles que fam uso de tal nome, os infames que estám a apontar e disparar contra toda umha família -de sobra conhecida na aldeia e na contorna por boa e por generosa- com a colaboraçom de dúzias de encapuçados armados, jornalista é quase o último que quereria chegar a ser na minha vida.

A noite do sete de janeiro prometia ser agradável. Num exercício de indisciplina, e achando em falta os colegas, decidim deixar os livros de estudo e achegar-me ao meio da aldeia, à casa onde o Senlheiro estava a viver com outros rapazes. Ali aguardava-me umha bonita surpresa: um amigo nosso, com o que fai anos tivéramos um grupo de música, estava de volta para passar umhas horas connosco em Quistiláns. O rapaz entrou no grémio da hotelaria e acabou, como tantos outros, por emigrar à Alemanha. Fazia anos que nom o víamos e o ambiente na casa era de verdadeira alegria.
Pouco durou a festa: o telefone soou e, às poucas palavras, a cara do receptor da chamada virou branca. Exagero, para arriba, se digo que figérom falta segundos para me decatar de que algo, embora eu nom soubesse o que, andava mal. Mui mal.
A suspeita confirmou-se. Um militante galego fora capturado na Amaía numha operaçom relacionada com o que os miseráveis lacaios do poder chamam de terrorismo. A Amaía nom é tam grande, nem tem tantos militantes, e a sala estava cheia de amigos do Senlheiro, mas ele faltava. Dous mais dous som quatro. A felicidade provocada pola volta dum amigo dava passagem à angústia e a raiva que produz a partida forçada doutro, com o pesado agravante de estar nas maos de quem estava e está.

Saímos à janela. A casa em que nos encontrávamos estava literalmente rodeada por um grande, grande número de encapuçados fortemente armados e havia umha grilheira aparcada a centímetros da porta. Porém, reinava um silêncio estranho. A tensom chegou a ser tal que umha colega nossa, que estivera entre risas e brincadeiras fazia uns minutos, começou a se encontrar mal, a marear-se e vomitar. O repatriado da Alemanha nom entendia nada. Durante um tempo, os nativos da aldeia chegámos a pensar que em qualquer momento iam botar a porta abaixo e também nos iam levar a nós. "Que fazemos agora?". A soluçom do momento foi fumar muito, quem fumava, e fazer zapping para polo menos carrejar a mente desde o horror da realidade até o puro lixo do mercado e a cutre fiçom televisiva. Quando um pom a TV para fugir da realidade real é que está realmente bem fodido.
Em Berlin ia fazer bom tempo. Chiqui protestava num reality show porque no espelho só via umha mulher feia e sem trabalho, e ninguém a queria. Umha simpática senhora asturiana produtora de queijo Gamonéu confessava que, embora levasse muitos anos na sua elaboraçom, nunca o provara, mas desfrutava colhendo-o ao peso e passando-lhe a mao. Ninguém falava do Senlheiro. Todas pensávamos no Senlheiro.
O assédio à casa e a situaçom de incerteza no referente a nós próprias (no tocante ao Senlheiro a incerteza perdura ainda) estendeu-se por duas horas e meia. Os mercenários sem rosto mandavam golpes de lanterna para dentro da casa e por vezes parecia que queriam entrar na eira. Tardamos em reagir, mas reagimos. Mais ou menos umha hora depois do começo da presença dos encapuçados na aldeia, saimos às janelas e berramos: "Olá?". Bastou com isso para rebaixarmos consideravelmente a sua atitude intimidatória.

Ao cabo dessas duas horas e meia, grupos de gente querida fôrom aparecendo polo meio da aldeia. Antes nom as deixaram passar. Começamos a ver pessoas entre a escumalha fascista. A cousa mudou totalmente. Aguentamos uns minutinhos dentro e, ao fim, saimos da casa. Aí começou a longa série de cacheios. Os miseráveis tinham contróis na fonte e na saída da parte velha de Quistiláns, a uns vinte metros de distáncia um do outro. Atravessar esses contróis implicava um registo ao sair e um outro ao entrar. O registo incluía tirar o calçado, e muitas vezes também os calcetins, ficando um descalço sobre o chao frio. As faltas de respeito e as piadas de prepotência mercenária tampouco faltárom. Eu contei dez ou onze cacheios, só a mim, durante a noite e as primeiras horas do dia seguinte.
Porém, todo há que dizê-lo, começamos a sentir umha força importante, umha espécie de fabulosa proteçom. Que óstias: isto é Quistiláns. A nossa aldeia, a nossa gente. Víamos amigos e casas de amigos e de antepassados, víamos cenários de luitas e gargalhadas, de música e de inquebrantável amizade. Víamos e sentíamos umha vida inteira no lugar do mundo que nos é mais querido. Os bófias nunca entenderám isso.
Umha das cousas de que menos gostam estes polícias miseráveis, por mui encapuçados que forem, é de serem mirados diretamente aos olhos. É como o alho do vampiro. Dispugemo-nos a sondar um pouco esses continentes sem conteúdo, esses corpos sem alma. E é até divertido, porque eles criam a realidade da opressom momentánea e amparam-se nela, mas nós damos vida à verdadeira realidade: a miséria e a dignidade aparecem em toda a sua dimensom, cada umha assignada ao seu legítimo dono. Numha situaçom assim, mirar para os olhos do polícia é lembrar-lhe que tem a desgraça de ser um mercenário que se move só por dinheiro. Como dizia o rapeiro aquele: armas desalmadas contra almas desarmadas.

Continuávamos ocupadas militarmente, mas o estado de choque esvaira-se em certa medida e já lembrávamos quem éramos. Nós somos a aldeia. A incomodidade do uniformado já é manifesta: "pasa algo raro?". Home, vós...
Já sabíamos o que suspeitávamos desde que saimos da casa: só entrariam nela para fazer o registo quando vinhessem com o Senlheiro. A noite em vela nessa situaçom. Os mercenários iam fazendo relevos e algumhas de nós tomávamos café para enganar um pouco o corpo.
Já bem entrado o dia, acheguei-me a Compostela para deixar ali um amigo que tinha que ir trabalhar e recolher um outro, natural da aldeia mas que está a viver na cidade. Suspeitava, nom sei por que, que em quanto eu marchasse o trariam para aqui. É o que se chama por aí a Lei de Murphy: a tosta sempre cai ao chao por onde está a manteiga e Gudelj sempre mete o golo quando tu estás a ligar os cordons dos sapatos. Cousas da vida.

Assim foi, baixamos para a aldeia todo o rápido que pudemos. Aí foi quando o Senlheiro denunciou o que lhe estavam a fazer. Nós nom o vimos. Baixamos para o meio por umha corredoira um pouco escondida para nom gastarmos tempo em cacheios.
Em nengum momento vimos o nosso amigo. Os terroristas, os de verdade, impediam-no-lo, ao tempo que facilitavam o trabalho dos meios de manipulaçom do seu entramado terrorista. As horas passavam entre berros de ánimo.
Quando se retirárom, e a presença policial na aldeia foi já menor, soubemos que havia uniformados na casa familiar do Senlheiro. Já vale. Umhas quinze ou vinte pessoas baixamos cara ali para que a vida da sua família nom se visse mais perturbada ainda.
Na parte da aldeia onde vive essa família, da que nom se podem dizer mais que cousas boas, havia umha grileira e equipas da TVE e da nogenta e infame TVG, dispondo-se a gravar a casa de pedra de séculos de antiguidade onde se criou o nosso amigo. Naturalmente, dispugemo-nos a expulsar dali essa gente que vive das desgraças alheias e da carronha. O testemunho dos miseráveis da Telegaita é completamente falso. Por exemplo, por ali nom apareceu nengum pau. Mas nom me vou esforçar em exercer a advocacia, porque é tarde e tenho que ir a umha concentraçom.

Esses fôrom alguns dos factos. Já desculpei as eivas que este artigo poda ter ao começo. O Galizalivre e Abordaxerevista pedirom-me um relato do acontecido e eu fago-o, em quente e com a cabeça a mil por hora e em vários sítios distintos a um tempo. Entre eles, como nom podia ser doutro jeito, um quarto de sequestro e tortura.
Nom sabes como te vou botar de menos.